Para fazer bons caracóis há que conhecê-los e compreendê-los primeiro.
À sua volta existe uma espessa barreira de ignorância e de mitos que, em última análise, comprometem a obtenção do resultado desejado: um magnífico e portuguesíssimo prato de caracóis.
Um prato de caracóis perfeito, não é obtido por qualquer segredo bem guardado ou ingrediente fabuloso, mas tão só por uma sucessão de passos bem definidos.
Fazer caracóis permite uma enorme latitude de criatividade e variação mas, nos passos essenciais básicos qualquer improviso é o desastre.
Foi pela observação atenta de mestres na arte de fazer os mais espantosos caracóis, na tentativa e erro, no estudo da fisiologia e vida do simpático gastrópode, que compreendi finalmente quais os preceitos que fazem caracóis tão diferentes como os que se comem em Évora, Milfontes, no Rei dos Caracóis do Carvalhal, pela mão única de D. Luísa, ou ainda os de D. Manuela, que comanda os sabores da cozinha da Toca dos Caracóis, na Travessa da Boa-Hora, em Lisboa serem todos eles, cada um à sua maneira, verdadeiros monumentos gastronómicos.
São esses preceitos que enumerarei em seguida e aplicam-se a diversas sub-espécies de Helix, que são designados vulgarmente por caracol pequeno.
Escolha
É um ponto essencial. O caracol tem uma vida activa desde as primeira chuvas até ao princípio do Verão, dedicando-se à reprodução, crescimento do corpo e da casca, etc. o que o mantém magro e imprestável para consumo.
Quando a água começa a escassear o caracol faz reservas de músculo e gordura, suspende o crescimento da casca e a ingestão de pedras para esse fim e prepara-se para ficar de 2 a 4 meses recolhido na casca que entretanto fecha com um opérculo estanque.
É essa a altura ideal para ser consumido, pois está gordo e limpo de pedra.
Quando adquirir caracóis prefira sempre os que se apresentam secos, limpos e recolhidos na casca, melhor ainda se estiver com a casca ainda fechada pelo opérculo, garantia de um animal excelente.
Rejeite caracóis que estejam total ou parcialmente fora da casca ou com a casca suja de excrementos, sinal que já apanharam humidade e já ingeriram excrementos uns dos outros e até pedaços partidos de casca.
Aqui, as coisas funcionam ao contrário: quanto mais "morto" parece, melhor. ( deve sempre cheirar os caracóis, rejeitando todos os tiverem cheiro desagradável ou pútrido).
Lavagem
Deve lavar os caracóis cerca de duas horas antes da hora prevista para o petisco (se forem animais operculados, fechados, dê mais uma hora).
Nesta fase, a ignorância sobre a fisiologia do bicho, provoca os mais delirantes disparates, muitos deles publicados por aí. Lavar os caracóis é, exactamente, lavar a casca por fora.
É tão possível lavar o interior de um caracol com água como um ser humano lavar os pulmões ou os intestinos quando toma duche!
Provocar a emissão de muco queimando o animal com sal, não limpa nada; o muco é segregado na altura da agressão e essa secreção é feita à custa das reservas de energia e humidade do corpo, portanto desgraçando a qualidade que até podia ter até ali.
Bom, lave os caracóis em águas limpas até verificar que já não sai sujidade.
Se o caracol estiver seco, bastam 3 a 5 passagens.
Na última passagem, passe os caracóis para uma panela, cubra-os de água, tape bem e deixe em repouso por 30 minutos.
Morte
Após os 30 minutos, ponha a panela no bico mais pequeno que o fogão tiver e acenda o lume no mínimo. Quanto mais lento for o aquecimento, mais saídos e esticados ficam os caracóis.
Se esta operação é bem feita, o consumo dispensa até o uso de palito ou alfinete.
Deve assegurar que demore pelo menos 30 minutos desde o início até ao momento em que morrem, cerca dos 65ºC.
Tempero
Assim que estiverem mortos, o que se vê bem, tempere com tudo o que quiser, excepto sal, passe para um bico grande e levante o lume.
Quando começa a ferver, forma-se uma espuma de lado que vai crescendo como leite a subir. Vigie, quando a espuma estiver quase a transbordar, apague o lume, lance uma colher de sopa de vinagre, junte então o sal, tape e deixe ficar mais 30 minutos tapados antes de servir.
Quanto aos temperos, eu gosto de sabores simples e definidos. Por isso uso apenas, orégãos, alho, azeite e sal. Por vezes uma malagueta para "apimentar" o resultado.
Mas há muitas variantes possíveis, por vezes muito boas: juntar refogados diversos feitos à parte, com ou sem chouriço, presunto, caldos Knorr, etc
Comer caracóis é algo de pessoal.
Como indiquei, se a confecção tiver sido impecável o bicho está tão saído da casca que pode ser puxado com a boca, e com vantagem pois virá assim temperado pelo molho onde estava imerso.
Gosto, no entanto de utilizar um alfinete em vez do palito que, por motivos higiénicos , substituíram as tradicionais rolhas com alfinetes espetados de há uma década atrás. Levo por isso o meu alfinete pessoal quando os como fora de casa e chamo a atenção para o modo como se deve retirar o animal da casca, de modo a que saia inteiro e não, como acontece se o espetar e puxar a direito, deixando dentro da casca toda a parte enrolada, quase meio corpo.
Pegue assim no caracol e espete o palito ou alfinete do modo como se vê na foto.
Depois, imprima ao alfinete um movimento rotativo como se continuasse a desenhar a espiral natural que é a casca do caracol, que assim se desenrola sem atritos e sai completo e magnífico.
Artigo de: Luis Pontes
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